quinta-feira, 16 de maio de 2013

Despertar...

Troféus do amor.


Quando casei, os pelos no meu queixo eram pretos, negros
 como as asas da graúna. Hoje são brancos. Meus cabelos 
também mal haviam iniciado a migração interna que os levou
 às costas, à barriga e ao interior das orelhas. Artrose? Não 
conhecia.
E eu casei com uma mocinha linda! Foi complicado; atravessei
meio mundo, larguei tudo o que fazia e me desentendi com a
família pelo privilégio de casar com ela. Mas casei.
Ela não é mais uma mocinha; hoje a mocinha da casa é a
nossa filha, já bem maior que a mãe. Temos também um
 rapaz, não só maior que a mãe como com o pé maior que o
 meu. Esses gigantes vieram de dentro da barriga daquela
 mocinha com quem eu me casei, anos atrás. Sugaram-lhe os
 seios, adoçaram-lhe o olhar e criaram, eles também, novos 
troféus, novas linhas delicadas que lhe marcam o rosto.Em 
breve, o tempo que passamos juntos será maior que o tempo 
que ela passou sem mim. Os pelos brancos que me foram 
surgindo já surgiram sob o seu cuidado, bem como as finas 
linhas que enfeitam hoje o seu rosto: essas vêm dos sorrisos 
que ela me deu, aquelas de franzir o sobrolho para me olhar 
sob o sol tropical.

A pele da mão do meu amor não é mais lisa e elástica, como 
era a pele daquela mocinha. É ainda mais linda, mais delicada;
 mais seda e menos borracha. É a mesma mão que me foi 
dada, anos atrás, na Igreja Matriz, a mão que carrega a aliança 
gêmea da que hoje me vejo fisicamente – e psicologicamente! 
– incapaz de tirar do dedo. Com os anos, ela se aprimorou,
 afinou-se, tornou-se mais talentosa. As flores de que ela cuida 
– nossa piada é que ela casou comigo só para assinar 
“Ramalhete”, tamanho é o seu amor pelas flores – são hoje
 mais viçosas. Suas artes são mais belas. O toque, quase
 inesperado em sua delícia, daquela mão delicada que busca a
 minha quando estamos sentados próximos é ainda mais doce, 
mais suave. Mais amado.
Ontem à noite, ela me contou que eu me mexo demais 
dormindo e acabo deitado por cima das cobertas. Disse-me 
minha guardiã que acorda de noite e me vê, encolhido de frio
sobre os cobertores, tremendo nas nossas temperaturas
outonais próximas do zero. Puxa daqui, estica dali, e, com suas
mãozinhas delicadas, cobre esse marido bobo e tão mais
pesado que ela. Eu só suspiro e me achego ainda mais ao 
seu calor.
Eu não sabia: sou homem, sou um bruto incapaz de 
acompanhar o amor dessa mulher admirável, em que o tempo 
e seus troféus transformaram a linda mocinha com quem um 
dia me casei. Só sei que amo essa mulher ainda mais que amei 
aquela mocinha.

CARLOS RAMALHETE
Gazeta do Povo

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